Os flavienses amantes da literatura e da
cultura têm podido assistir, na Biblioteca Municipal, à apresentação de
diversas obras, predominantemente de autores do concelho ou da região, mas
também de outros recantos deste nosso Portugal, tornando, desta forma, este
belo edifício numa referência incontornável no nosso panorama literário e cultural.
Recentemente, no dia sete de setembro, foi
apresentado o livro Memórias de Céu e
Inferno, de António Passos Coelho, cuja ação decorre maioritariamente na
cidade de Chaves, sendo referidas frequentemente localidades próximas como
Pedras Salgadas, Vidago, Montalegre, Valpaços, Vila Real, Régua, Pinhão, entre
outras. Através da personagem principal, José Silvestre dos Anjos, pode o
leitor (re)conhecer alguns aspetos desta cidade e região, desde a linha do
Corgo e suas estações, às termas, hotéis, ruas centrais, gastronomia, atividade
económica, imprensa, hábitos e costumes, tradições…
Chaves foi a cidade onde Silvestre se fez
homem, descobriu o amor e a verdadeira felicidade, daí que seja conotada com o
céu:
“… Completamente alheio à tragédia que
assolava a Europa, com a avalanche militar nazi subjugando a Bélgica, a
Holanda, o Luxemburgo e parte da França, […], e repercutindo-se gravemente no
nosso país em dificuldades económicas que nos impunham graves restrições
alimentares, eu era feliz em
Chaves. Vivia feliz na simpática, bonita, acolhedora, farta
cidade fronteiriça flaviense. Vivia no céu!”, confessa Silvestre na página 116.
Chegando a Chaves na fase da adolescência,
Silvestre apenas sabia que “Ia para casa de um senhor proprietário de uma firma
comercial em Chaves. Como
empregado. […]. Como em Chaves havia escola comercial e industrial, talvez
fosse possível frequentá-la”, lemos na página 70.
Outras referências surpreendem o leitor,
demonstrando que o autor da obra é bom conhecedor destas paragens no contexto
sócio-político de meados do século XX. Eis alguns exemplos:
-
“Uma sorte … havia de colocar-me no regimento de infantaria de Chaves” (p.
183);
-
“A população [de Vila Real] era cordial e simpática, de resto como a de Chaves”
(p. 198);
-
“Passei a ser a pessoa mais conhecida de Chaves. Isto é, mais falada. Sobretudo
depois de o Notícias de Chaves transmitir a novidade” (p. 118);
-
“O Notícias de Chaves, na coluna Sociedade, publicou o evento” (p. 208);
-
“Em Chaves não deviam ser os mesmos santos, portanto não era justo
responsabilizá-los pelas desgraças que me aconteceram. […] A quem ia eu rezar
na igreja, ou capela, ou lá o que era, de Chaves? Havia a grande festa dos
Santos. Se calhar o padroeiro ou padroeiros dos flavienses (só mais tarde soube
que os habitantes de Chaves se chamavam flavienses) eram os santos todos da
corte celeste.” (p. 87);
-
“em casa, entretinha-se com o Comércio do Porto e o Notícias de Chaves” (p.
219);
-
“Os de Chaves, após a refeição de normal menu da casa, foram cuidar de
transporte para a Figueira da Foz, onde tencionavam demorar uns dias” (p. 214);
-
“Felizmente, em Chaves, as meretrizes não trabalhavam na via pública e não
constava haver homossexuais, pelo menos assumidos” (p. 267);
-
“[…] o seu único irmão, há pouco falecido em Vilarandelo […]. Casou-se aos 34
anos com a Céu, que conhecera num baile de passagem de ano, no Palace Hotel de
Vidago” (p. 219);
-
“…és o gajo mais sortudo que imaginar se pode. […] Por este andar não me admira
que te tornes o dono das nossas termas, das águas das Pedras Salgadas e do
Vidago, sei lá, de Chaves inteira!” (p. 209);
-
“Numa comemoração do dia da unidade de Chaves, um camarada oficial superior
avisou-o [ao pai de Céu], muito sigilosamente, de que tinha notícias
preocupantes acerca dele, major. Aconselhava-o a retirar-se por uns tempos para
o estrangeiro, logo que lhe fosse possível, até que as coisas amainassem a seu
respeito. A fronteira estava ali a dois passos, saltasse para o outro lado e de
lá para França. A cumplicidade dos regimes salazarista e franquista não
garantia segurança no país vizinho.” (p. 220);
-
“Descrevi o importante da estadia em Chaves, numa família com filha única” (p.
128);
-
“lembrei que pensava comprar uma moto, mas não as havia à venda em Chaves”. (p.
129);
-
“A consoada desse ano […] as habituais preparações culinárias: açorda de
pescada de Vigo, bacalhau graúdo cozido com a saborosa batata de Montalegre e
couve tronchuda da Veiga de Chaves, regados pelo odorífero azeite de Valpaços
[…]” (p. 157);
-
“Nesse sábado de tarde tratei de arranjar pensão. Na primeira que visitei
faziam preço razoável, mas avisaram-me que de Maio a Outubro me custaria mais,
devido à procura pelos frequentadores das termas. Na segunda não me falaram em
subida sazonal da mesada, que era aceitável” (p. 165);
-
“No café […] águas (engarrafada natural, das Pedras Salgadas, do Vidago e de
Carvalhelhos, […] fatias de bola de carne e pastéis de Chaves” (169).
Muitas outras referências se encontram nesta
obra onde a reconstituição de uma época histórica difícil, de perseguições,
fome, medo e incertezas se alia à recriação dos sentimentos mais puros e à
descoberta do bem mais precioso: o amor.
Uma obra que vale a pena ler porque revela o
mais sublime e o mais grotesco que a humanidade consegue atingir.
Manuela Tender
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